O artigo faz uma ótima análise das transformações que a Cultura Hacker sofreu desde a sua origem, quando passou a ser associada ao ciber crime nos anos 70, 80 e 90, até os dias atuais, aonde o termo hacker passou a ser associado a inovação na área tecnológica. Esse processo de renascimento da cultura hacker, de um movimento contracultural e desobediente para um conhecimento associado a novas formas de utilizar a Internet, foi motivado pela grande demanda criativa das startups de tecnologia.
Como o artigo é muito longo, resolvi transcrever abaixo os principais trechos.
[John] Draper foi um dos primeiros phreakers, um grupo bastante variado de curiosos fanfarrões inclinados a explorar e se aproveitar de falhas no sistema para obter acesso sem custo. Aos olhos da sociedade convencional, estes phreakers não passavam de jovens galhofeiros e desocupados. Contudo, seus feitos foram incorporados ao folclore da cultura hacker contemporânea. Em 1995, durante uma entrevista, Draper disse: “Eu estava mais interessado em descobrir como o serviço de chamadas pelo telefone funcionava, por curiosidade. Não tinha nenhuma intenção de dar calote e roubar o serviço.”
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Hackers acreditam que lições essenciais podem ser aprendidas sobre os sistemas – e sobre o mundo – ao separar suas partes, entender como funcionam e usar esse conhecimento para criar coisas novas e ainda mais interessantes.
Apesar de sempre alegar inocência, é evidente que a curiosidade de Draper era essencialmente subversiva. Ela representava uma ameaça às hierarquias de poder dentro do sistema. Os phreakers tentavam revelar a infraestrutura de informação, e ao fazer isso demonstravem um descaso calculado pelas autoridades que dominavam essas estruturas.
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Esta dinâmica não é exclusiva da Internet. Ela está presente em vários outros aspectos da vida. Por exemplo, os pranksters (pregadores de peça, n.t.) que se metem com as empresas ferroviárias ao travar catracas, deixando-as abertas para os demais usuários. Talvez eles não se enxerguem como hackers, mas eles trazem consigo uma ética de desdém pelo sistema que normalmente permite pouca margem de liberdade ao indivíduo comum. Esses tipos de subculturas semelhantes a dos hackers não necessariamente se enxergam em termos políticos. Ainda sim, eles compartilham uma tendência em comum, no sentido de uma criatividade rebelde que almeja um crescimento do poder de ação dos menos favorecidos.
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Hackear então, poderia ser considerada uma prática com raizes muito profundas – primária e originalmente humana tal qual a própria desobediência. (...)
O impulso de ação do Hacker é sempre crítico. Ele desafia, por exemplo, as ambições corporativas.
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O hacker é ambíguo, especializando-se em sobrepassar os limites estabelecidos, incluídas aí as linhas de batalha ideológica. Trata-se de um espírito evasivo, subversívo, e difícil de classificar. E, sem dúvida, ao invés de apontar para algum fim específico reformista, o espírito hacker é uma “maneira de ser”, uma atitude em relação ao mundo.
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Uma figura investida de poder econômico, como um industrial, por exemplo, depende de um sistema de controle sobre seu capital e seus meios de produção. A atitude de um ativista Ludista seria destruir este sistema durante um momento de revolta. O hacker, por sua vez, procura compreender e explorar os sistemas de proteção, e modificá-los para que se auto-destruam, ou reprogramá-lo para frustar as intenções dos que detém o controle sobre eles, ou ainda criar meios de acesso ao mesmo tipo de sistema para os que originalmente não detém este controle. A ética hacker é portanto uma complexa composição da curiosidade exploratória, uma atitude desviante de revolta, e inovação criativa em face aos sistemas de controle com os quais se opõe. Esta ética emerge de uma combinação destas três atitudes.
A palavra Hacker passou a ser usada na acepção corrente a partir da era da Tecnologia da Informação (TI) e da computação pessoal. O subtítulo do livro de Steven Levy – Heroes of the Computer Revolution – imediatamente situou os hackers como os cruzados da cultura geek da era dos computadores pessoais. Enquanto alguns aspectos desta subcultura eram bastante amplos – como “Desconfiança nas autoridades” e “promover descentralização” - outros eram muito centrados no universo semântico e terminlógico da tecnologia da informação. “É possível criar arte e beleza a partir de computadores”, dizia um, e “Toda informação deve ser de livre acesso”, declarava outra.
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Já nas mãos da mídia sensacionalista, o ethos (forma de agir) do hacker é frequentemente reduzido ao ato de explorar brechas de segurança e ganhar acesso a sistemas fechados. De alguma forma, então, os computadores foram associados à formação da imagem do hacker, pelo menos no imaginário popular. Mas ao mesmo tempo, também foram a sua ruína. Se o imaginário popular não tivesse associado a imagem do hacker de forma tão forte ao universo da TI, seria difícil acreditar que essa imagem demoníaca tivesse sido tão facilmente criada, ou que pudesse ser, como foi também, tão facilmente destituído dessa caracteristica ameaçadora.
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A construção dessa imagem do “hacker do bem” se realizou de formas inesperadas, pois em nosso mundo computadorizado vimos também a emergência de um tipo de indústria agressivamente competitiva dotada de uma busca obssessiva por inovação. Este reino das chamadas startups, ou um tipo muito específico de empresas voltadas para inovação em tecnologia, dos capitalistas afeitos a investimentos de alto-risco e altos retornos, e de reluzentes departamentos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico de grandes companhias. E justamente ali, em meio a subculturas como a encontrada no Vale do Silício na Califórnia, que encontramos este espírito rebelde do hacker sucumbindo à única força que pode potencialmente matá-lo: a gentrificação. [processo de pacificação de ameaças nebulosas e sua transformação em dinheiro]
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Estamos testemunhando o processo de gentrificação da cultura hacker. O hacker inicial, contracultural e desobediente, tem sido pressionado a colocar-se a serviço de uma classe empreendedora capitalizada. Este processo começa inocentemente, sem dúvida. A associação desta ética hacker com as startups começou a acontecer como parte de um autêntico ímpeto contracultural de nerds excluídos do sistema em inventar novas formas de utilizar a internet. (...)
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Esta forma ambígua de pensar flui em direção a uma cultura corporativa predominante, com o crescente número de eventos corporativos organizados sob a foma de ‘hackatons’ (ou maratonas de hacks). (...)
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Neste contexto específico, a ética hacker é resumida a um tipo de ideologia do ‘solucionismo’, (...) a visão de mundo da indústria contemporânea da tecnologia como uma série de problemas aguardando por soluções (lucrativas).
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O espírito não-gentrificado do hacker deve ser um bem comum acessível a todos. Este espírito pode ser observado nas fissuras marginais da nossa sociedade em todas as partes Ele está presente nas formas emergentes de produção descentralizadas, e na cultura do faça-você-mesmo, nos hackerspaces e nas fazendas urbanas. Nós podemos observá-lo na expansão dos movimentos Open (Open Software, Open Hardware, Open Data, que traduzem para o português como Software Aberto ou numa expressão mais radical libertária como Software Livre, Hardware Livre, Dados Abertos), desde o hardware aberto, até os laboratórios abertos de biotecnologia, e os debates em torno das famigeradas impressoras 3D como uma forma de estender o conceito de código-aberto para o domínio da manufatura. Em um mundo com um crescente número de instituições econômicas grandes e sem mecanismos de controle social, precisamos como nunca deste tipo de atitude de resistência cotidiana.
E o artigo conclui, brilhantemente:
O ato de hackear, em meu ponto de vista, é uma rota para esquivar-se das algemas do fetiche do lucro, não um caminho para elas.
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